Por Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira
O Serviço Nacional de Informações (SNI), criado em 13 de junho de 1964
com a finalidade de coordenar as atividades de informação e
contra-informação em todo o país, produziu inúmeros relatórios sobre
assuntos julgados pertinentes à Segurança Nacional durante o regime
militar. Num deles, de 14 de julho de 1978, podemos encontrar um relato
sobre a manifestação, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo,
daquilo que se tornaria mais adiante o Movimento Negro Unificado (MNU),
uma das entidades do movimento negro surgidas no Brasil na década de
1970.
Realizou-se em São Paulo, no dia 7 julho de 1978, na área
fronteiriça ao Teatro Municipal, junto ao Viaduto do Chá, uma
concentração organizada pelo autodenominado “Movimento Unificado Contra a
Discriminação Racial”, integrado por vários grupos, cujos objetivos
principais anunciados são: denunciar, permanentemente, todo tipo de
racismo e organizar a comunidade negra. Embora não seja, ainda, um
“movimento de massa”, os dados disponíveis caracterizam a existência de
uma campanha para estimular antagonismos raciais no País e que,
paralelamente, revela tendências ideológicas de esquerda. Convém
assinalar que a presença no Brasil de Abdias do Nascimento, professor em
Nova Iorque, conhecido racista negro, ligado aos movimentos de
libertação na África, contribuiu, por certo, para a instalação do já
citado “Movimento Unificado”.
Esse documento, que se encontra no Arquivo Ernesto Geisel, depositado
no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
(CPDOC) da Fundação Getulio Vargas, não é o único produzido pelos
órgãos de informação da época sobre a atividade de militantes e
organizações do movimento negro. Mas ele nos ajuda a situar a atuação
desse movimento social na História do Brasil, mais especificamente no
contexto da abertura política, iniciada em 1974. Desde o início da
década de 1970, é possível registrar a formação de entidades que, como
diz o relatório do SNI, buscavam denunciar o racismo e organizar a
comunidade negra.
Origem na morte de jovem
Por exemplo, o Grupo Palmares, criado em Porto Alegre em 1971; o Centro
de Estudos e Arte Negra (Cecan), aberto em São Paulo em 1972; a
Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba), inaugurada no Rio de
Janeiro em 1974, e o Bloco Afro Ilê Aiyê, fundado em Salvador também em
1974. Militantes de algumas dessas e de outras entidades articularam-se
em 1978 para a realização do ato público ao qual o documento do SNI se
refere. Sua motivação teve origem no assassinato do jovem negro Robson
Silveira da Luz, no distrito policial de Guaianazes, para onde tinha
sido levado preso, acusado de roubar frutas numa feira, e na
discriminação sofrida por quatro meninos negros impedidos de treinar
vôlei no time infantil do Clube de Regatas Tietê.
A manifestação contou com a presença de Abdias do Nascimento, militante
de longa data, que em 1968 havia se exilado nos Estados Unidos, onde
foi professor em várias universidades. O fato de ser apontado como
“conhecido racista negro” pelo relatório do SNI é um dado interessante e
pode ser explicado pela forte atuação do movimento negro, naquela
época, no sentido da denúncia do chamado “mito da democracia racial”,
isto é, da ideia de que não haveria racismo no Brasil. Como Abdias do
Nascimento, de acordo com o SNI, denunciava um racismo “inexistente”,
ele mesmo seria racista. Outro documento, de janeiro do mesmo ano de
1978, advertia: “Esses movimentos, caso continuem a crescer e se
radicalizar, poderão vir a originar conflitos raciais”.
‘Imprensa negra paulista’
As organizações formadas na década de 1970 não foram as primeiras na
história do país. Logo depois da abolição, no final do século XIX, já
circulavam jornais voltados para as populações negras, como o Treze de
Maio, do Rio de Janeiro (1888), e O Exemplo, de Porto Alegre (1892). Em
São Paulo, a chamada “imprensa negra paulista” denunciava, nos anos
1920, a discriminação racial. Dela surgiram alguns dos fundadores da
Frente Negra Brasileira, em 1931, que chegou a se transformar em partido
político em 1936, mas logo foi extinta, como os demais partidos, pelo
Estado Novo no ano seguinte. Na década de 1940 foram fundadas várias
entidades, como a União dos Homens de Cor e o Teatro Experimental do
Negro.
Muitos dos documentos desse período mostram que não era rara a
circulação de referenciais e informações de fora do Brasil,
principalmente da África e dos Estados Unidos. O jornal O Clarim
d’Alvorada, publicado de 1924 a 1932 em São Paulo, abrigava uma seção
intitulada “O mundo negro”, na qual eram publicadas traduções de artigos
do jamaicano Marcus Garvey (1887-1940), defensor do pan-africanismo. O
jornal Quilombo, fundado por Abdias do Nascimento em 1948, reproduzia
com freqüência artigos da revista Présence Africaine, publicada em Paris
e Dacar a partir de 1947, sob a direção do senegalês Alioune Diop. Nos
anos 1960, esse intercâmbio se intensificou diante das lutas de
libertação das colônias africanas e da mobilização pelos direitos civis
nos Estados Unidos. Como se viu no documento reproduzido acima, Abdias
do Nascimento oferecia perigo, segundo os investigadores do SNI, porque
estava “ligado aos movimentos de libertação na África”.
As
idéias que circulavam entre os militantes nos anos 1970 e 1980 e suas
formas de ação – como o ato público realizado em São Paulo em 1978 –
foram objeto da pesquisa “História do movimento negro no Brasil:
constituição de acervo de entrevistas de história oral”, que
desenvolvemos no CPDOC entre 2003 e 2007. A metodologia da história
oral, que consiste na realização de entrevistas gravadas com testemunhos
do passado, permite o registro de narrativas de experiência pessoal e o
conhecimento de formas de articulação e de visões de mundo de pessoas e
grupos.
Antenados com a luta racial no exterior
Essas entrevistas nos permitiram perceber que, além dos poetas de
língua francesa, que continuaram a ser lidos e discutidos, e da luta
contra o apartheid, regime de segregação racial que vigorou na África do
Sul entre 1948 e 1992, outro assunto que mobilizava as atenções era a
independência dos países africanos de colonização portuguesa –
Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe –,
ocorrida entre 1974 e 1975, poucos anos antes do ato público nas
escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. É recorrente, por exemplo, a
menção aos Poemas de Angola, de Agostinho Neto, fundador do Movimento
Popular de Libertação de Angola e primeiro presidente do país, em 1975.
Muitas vezes, essas leituras são lembradas como cruciais para a
conscientização do entrevistado e para sua opção pela militância. A
descoberta de si mesmo como negro se mesclava a uma tomada de posição
política, levando a atitudes que, nos dias de hoje, já não têm o mesmo
peso. O simples ato de comprar uma revista, por exemplo, era decisivo.
Foi o que nos contou Carlos Alberto Medeiros, militante do movimento
negro no Rio de Janeiro desde a década de 1970:
Eu trabalhava no Jornal do Brasil, que era na Avenida Rio Branco
110. Eu passava lá e via revistas estrangeiras nas bancas de jornal. E
havia uma revista da qual eu já ouvira falar no Rio Grande do Sul, a
revista Ebony. Eu passava, via a revista, tinha até alguma curiosidade.
Mas até para comprar a revista a primeira vez eu tive que romper com
alguma coisa. Porque comprar uma revista de negros tinha um significado
de identificação. Eu já tinha um domínio do inglês que dava para ler.
Até que um dia eu comprei. E era final da segunda metade de 1969, na
época em que estava aquela coisa do black is beautiful, do cabelo afro. E
aquilo foi quase um amor à primeira vista. Bati o olho e falei: “É isso
que falta.”
Publicações do gênero influenciavam a formação e a disseminação de uma
consciência da negritude. Magno Cruz, importante referência do movimento
no Maranhão desde o início dos anos 1980, relata como foi atingido por
essa estratégia inicial. Em 1979, ele chegou a assinar a ata de criação
do Centro de Cultura Negra (CCN) local, a convite de sua fundadora,
Mundinha Araújo. Mas levou certo tempo até atuar como militante:
Eu sou fundador fictício, porque não fui fundador orgânico que
estava lá no início, nas primeiras reuniões. Qual era a minha
resistência em me engajar no trabalho do CCN? Eu não me considerava
negro. Inclusive o meu apelido na faculdade era Moreno. E eu era crente
que eu era moreno. Pensava: como ia participar de uma entidade do
movimento negro se eu não me considerava negro? Mas, com os seminários e
com as palestras, que houve muito, eu fui mudando. A Mundinha deu o
encaminhamento que eu acho que foi o melhor possível, porque foi de
formação. As primeiras reuniões eram reuniões de estudo. Era uma sala,
talvez um pouquinho maior do que essa aqui; quando iam mais de 30
pessoas, tinha que ficar gente do lado de fora. E era texto para a gente
ler, jornal para a gente ler, para discutir, livros... Ninguém sabia
nada sobre a história do negro. E aí, com esses cursos, esses seminários
de que eu fui participando, eu fui percebendo que era negro.
Postura afro
A essa estratégia de mobilização somavam-se várias outras, como a
adoção do penteado afro, a produção de audiovisuais, jornais e
panfletos, a difusão de informações em feiras e locais públicos, a
montagem de peças de teatro e a organização de grupos de dança e de
blocos afro. Encontros estaduais e regionais estimulavam o crescimento
do movimento negro. Em agosto de 1980, ocorreu o I Encontro Memorial
Zumbi, em Alagoas, com a presença de líderes nacionais, como Abdias do
Nascimento e a antropóloga Lélia Gonzalez (1935-1994). O evento
impulsionou a realização dos Encontros de Negros do Norte e Nordeste,
iniciados no ano seguinte. A partir de meados da década de 1980,
registram-se outros encontros em diferentes estados, além dos Encontros
de Negros do Sul-Sudeste e dos Encontros Estaduais e Nacionais de
Mulheres Negras. O I Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais
Quilombolas, realizado em 1995, deu origem à Comissão Nacional de
Articulação das Comunidades Rurais Quilombolas, criada em 1996.
A metodologia da história oral permite conhecer não só como essas
iniciativas ocorreram na prática, mas também de que modo, a partir
delas, as reivindicações do movimento negro acabaram sendo trazidas
pelos militantes para a esfera pública. Trata-se, pois, de uma
ferramenta importante para o estudo da história política. Hoje existem
diversas secretarias voltadas para a promoção da igualdade racial, no
governo federal e em governos estaduais e municipais, e novos artigos na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB de 1996, que
tornam obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas
escolas do país e incluem o dia 20 de novembro no calendário escolar
como “Dia Nacional da Consciência Negra”.
Aliás, o primeiro ato evocativo de celebração do 20 de novembro, dia da
morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, foi realizado pelo Grupo
Palmares, de Porto Alegre, em 1971. Passados sete anos, a segunda
assembléia nacional do MNU, realizada em Salvador em novembro de 1978,
declarou a data o “Dia Nacional da Consciência Negra”, que hoje é
feriado em mais de duzentos municípios do país. Este é um exemplo
bastante evidente do trabalho de disputa pela memória nacional, que
culminou com a inscrição do nome de Zumbi no livro dos heróis da pátria,
em 20 de novembro de 1996.
Movimento se espalha pelo país
Outra possibilidade aberta pela realização de pesquisas de história
oral é o acesso a experiências e interpretações do passado que não são
necessariamente aquelas consagradas por uma “história nacional”. Esse
pluralismo é facilmente compreendido quando percebemos que as
entrevistas nos apresentam novas periodizações. Do ponto de vista de
nossos entrevistados, a repercussão nacional do ato público nas
escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em 1978, possibilitou a
criação de muitas organizações em diferentes estados do país e acabou
sendo responsável pela difusão da noção de “movimento negro” como
designação genérica para as diversas entidades e ações a partir daquele
momento.
O marco seguinte foi o ano de 1988, por duas razões: comemorava-se o
centenário da Abolição, o que motivou uma série de ações de protesto que
denunciavam as condições de vida dos negros no país, e elaborava-se uma
nova Constituição. Duas importantes reivindicações do movimento viraram
texto constitucional – a criminalização do racismo (Artigo 5) e o
reconhecimento da propriedade das terras de remanescentes de quilombos
(Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Os anos
de 1995 e 2001 são os dois momentos seguintes. Em 1995 foi realizada em
Brasília uma marcha em homenagem aos trezentos anos da morte de Zumbi
dos Palmares. Era o primeiro ano do governo Fernando Henrique Cardoso,
que criou então um Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização
da População Negra, dando a partida nas primeiras iniciativas de ação
afirmativa na administração pública federal. E 2001 foi o ano da III
Conferência Mundial de Combate ao Racismo, realizada na cidade de
Durban, na África do Sul, que mobilizou o governo e as entidades do
movimento negro em sua preparação e resultou em novos acontecimentos,
como a reserva de vagas para negros em algumas universidades do país e
novos compromissos assumidos pelo Estado em âmbito internacional.
O estudo da História se enriquece quando conhecemos novas
periodizações, atuações e experiências, mas isso não significa que
podemos esquecer os marcos nacionais. A história do movimento negro no
Brasil não deve ser entendida como “descolada” da história
contemporânea, tanto do Brasil como do mundo. Os marcos aqui registrados
fazem sentido para o movimento negro e também para a história nacional,
pois se relacionam com conjunturas como a abertura política, o
centenário da Abolição, a Constituinte e o governo Fernando Henrique
Cardoso, entre outros. Eles tiram sentido desses contextos e
emprestam-lhes novos sentidos. Esta é a riqueza da história oral.
E convém não esquecer que, no próprio universo pesquisado, as
trajetórias e opiniões nunca são unânimes. Em nossa pesquisa, ouvimos
pessoas de diferentes regiões e muitas vezes de posições divergentes, o
que permite perceber a pluralidade de experiências e avaliações entre os
próprios militantes. Mas não há dúvida de que todos tiveram por
objetivo o combate ao racismo e a luta pela melhoria das condições de
vida das populações negras.
Revista de História
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