Cansado da poluição e do trânsito, um morador de São Paulo decide
arrumar as malas, comprar um abadá e partir para o carnaval da Bahia.
No aeroporto, enquanto imagina a Ivete Sangalo cantando, descobre que
esqueceu o passaporte e não pode embarcar. Passaporte? Para a Bahia? Isso mesmo: se a corte portuguesa não tivesse vindo para o Brasil em 1808, a Bahia provavelmente seria uma nação e o resto do que você conhece hoje como Brasil seria um amontoado de países. “Sem a transferência da corte portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro, seria impossível preservar a unidade do que é o Brasil”, diz o historiador
Luiz Carlos Villalta, autor do livro O Império Luso-Brasileiro e os
Brasis. “Ocorreria com a América portuguesa o que ocorreu com a América
espanhola, dividida em vários países que, hoje, formam conosco a América
Latina.”
Mas, antes de agradecer a D. João VI por não precisar de passaporte
para pular o carnaval em Salvador, agradeça a Napoleão. Ao tomar o poder
na França, em 1799, ele deu início a uma série de invasões na Europa
que obrigariam a fuga da corte portuguesa
para o Brasil. No final de 1807, as tropas napoleônicas estavam na
Espanha e marchavam em direção a Lisboa. Confrontadas com a robustez das
armas francesas, as frágeis tropas portuguesas não teriam como defender
o país. Entre 25 e 27 de novembro de 1807, de 10 000 a 15 000 pessoas
embarcaram em navios portugueses rumo ao Brasil – ministros, juízes,
funcionários do Tesouro, militares, membros do clero. Trouxeram consigo
também o tesouro real, os arquivos do governo, uma máquina impressora e
várias bibliotecas.
No dia 28 de janeiro de 1808, na primeira escala na Bahia
antes de chegar ao Rio de Janeiro, D. João VI decretou a abertura dos
portos do Brasil às nações amigas – leia-se Inglaterra, que havia
declarado guerra à França em 1803 e foi responsável pela proteção dos
navios portugueses até o Brasil. Mas, se os mesmos ingleses conseguissem
enviar tropas diretamente para Portugal, evitariam a invasão dos
franceses e a necessidade da transferência da corte.
“Sem a vinda da Coroa portuguesa para cá, mais cedo ou mais tarde
algumas províncias do Brasil iriam conquistar sua independência”, diz
Lúcia Bastos, professora de História da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro, que está pesquisando a influência da figura de Napoleão no
império luso-brasileiro. “Naquele tempo, os deputados brasileiros da
corte de Lisboa não falavam em nome do Brasil, mas em nome de
Pernambuco, da Bahia, do Rio de Janeiro.”
A historiadora diz que o Rio Grande do Sul, alvo de disputas entre
Espanha e Portugal, provavelmente formaria um país independente anexado
ao que é hoje o Uruguai. “É possível que essa região se tornasse uma
espécie de República do Prata”, diz Lúcia Bastos. E as divisões não
terminariam por aí. Surgiria um novo país em Pernambuco – possivelmente
anexando alguns Estados vizinhos –, outro formado pelo Pará e Amazonas,
uma nação no Maranhão... enfim, o mapa da América do Sul seria outro.
E o mais surpreendente: é provável até que cariocas, paulistas,
mineiros e paranaenses vivessem num mesmo país com sede no Rio de
Janeiro. “Mesmo assim, a cidade do Rio seria provavelmente bem diferente
do que é hoje”, diz Luiz Celso Villalta. “Como não teria sido sede da corte portuguesa, a fisionomia do centro urbano seria semelhante à de uma cidade como Olinda, sem construções reais do século XIX.”
A desigualdade econômica entre as regiões seria menor. “O Sudeste
continuaria sendo um centro econômico importante, mas alguns países do
Nordeste, livres do poder do Rio de Janeiro, poderiam ter enriquecido
mais”, diz Lúcia Bastos. “A abolição dos escravos também teria
acontecido muito antes nesses Estados, já que a demora na tomada dessa
decisão teve o apoio da elite cafeeira do Sudeste.” No Estado do Ceará,
por exemplo, a escravidão já havia sido praticamente abolida desde 1870.
Outro cenário seria a corte portuguesa
não vir para o Brasil e cair nas mãos de Napoleão. “Foi isso o que
aconteceu com a Espanha, que foi tomada pela França em 1808”, diz
Villalta. “Provavelmente ocorreria no Brasil o mesmo que nas colônias
espanholas, que se tornaram independentes.” Não tendo de ser fiéis a um
rei empossado por Napoleão, as províncias rapidamente alcançariam a
independência. “De uma forma ou de outra, a fragmentação do território
que hoje é o Brasil seria quase certa”, diz o historiador.
Até mesmo o sotaque dos cariocas não existiria se a corte portuguesa
não chegasse ao Brasil no século XIX. “É claro que o desembarque de 15
000 pessoas no Rio de Janeiro mudou o jeito de falar da maioria da
população”, diz Ataliba de Castilho, professor de Filologia e Língua
Portuguesa na USP. “Como dava mais prestígio falar como os fidalgos
portugueses, a população do Rio de Janeiro foi assimilando todos os
chiados que hoje distinguem o típico falar dos cariocas.” Ele diz que,
sem a vinda da corte, provavelmente não haveria muitas diferenças entre o
falar de um surfista carioca de um cantor de dupla sertaneja do
interior de São Paulo.
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