Tendo
atrás a estátua do presidente Lincoln e à frente o obelisco que
homenageia George Washington, em 28 de agosto de 1963 o pastor Martin
Luther King Jr. fez um discurso histórico: “Eu tenho um sonho”.
Combatendo o racismo da sociedade norte-americana, o futuro Prêmio Nobel
da Paz usou uma imagem interessante para definir o episódio da
Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776: uma espécie de
cheque a ser descontado pelas gerações futuras do país.
O líder dos direitos civis explicou que o cheque, levado ao banco por
mãos negras, voltou com a marca “fundos insuficientes”. O discurso foi
um protesto contra este estelionato, pois os afrodescendentes ainda
lutavam por seu 4 de julho, 187 anos depois da ruptura com a Inglaterra.
Em defesa do voto feminino, mulheres recorreram a argumentos
semelhantes, assim como os conservadores do século XXI do Tea Party – grupo político republicano conservador – invocam o espírito da Independência ao proclamar suas ideias e projetos.
Esse sentimento vem de longe. Fundadas no século XVII, as 13 colônias
inglesas da América do Norte foram abandonadas à própria sorte, pois a
Inglaterra estava ocupadíssima com crises internas, especialmente a sua
guerra civil, quando o Parlamento liderou a luta contra o absolutismo
dos reis Stuart. No século XVIII, tudo mudara. Estável e rica, a
Inglaterra dava os primeiros passos da industrialização. As colônias
teriam um novo papel.
John Hancock chegou a exagerar o tamanho da assinatura na Declaração para o rei George III ler com clareza, um gesto ousado de humor
Foi a partir de 1764, quando o Parlamento de Londres endureceu e
reafirmou seu papel de metrópole no controle das colônias, que as
lideranças do Novo Mundo iniciaram os boicotes e protestos violentos
contra a ordem reinstaurada. As leis inglesas passaram a restringir o
comércio e a liberdade das colônias americanas, como a lei do açúcar e a
do chá. As hostilidades evoluíram para choques armados e, em 4 de julho
de 1776, para espanto do mundo, congressistas reunidos na Filadélfia
proclamaram a Independência, fato até então inusitado no Novo Mundo. O
princípio revolucionário de que “todos os homens foram criados livres e
iguais” tornara-se concreto pela primeira vez na História.
Quando homens brancos e ricos puseram suas assinaturas na declaração
formal de independência, estavam rompendo o modelo político
colônia-metrópole. John Hancock (1737–1793) chegou a exagerar o tamanho
da assinatura para o rei George III ler com clareza, um gesto ousado de
humor, porque todos conheciam a força do império. A posteridade, no
entanto, rendeu homenagem à ousadia e Hancock virou sinônimo de
assinatura.
Para nós, brasileiros, a comparação é interessante [Ver RHBN nº 66].
O gesto simbólico da nossa Independência de 1822 foi pintado em “O
grito do Ipiranga” somente em 1888, por Pedro Américo. No quadro, foi
cristalizado o imaginário bem digerido em textos didáticos e em filmes:
D. Pedro grita, de forma romântica e passional: “Independência ou
Morte!” Já a cena da Filadélfia, também representada no século XIX por
John Trumbull (1756-1843), recorre à tinta racional: homens discutem e
definem os motivos pelos quais são levados ao ato da ruptura. Dois
momentos e dois países diferentes.
O príncipe Pedro estabeleceu mais um slogan do que um
programa. Os EUA nasceram a partir de uma declaração pormenorizada, com
princípios iluministas de liberdade para todos, igualdade, e
considerando a felicidade como um direito universal. O que ocorreu nos
séculos seguintes foi, sistematicamente, a busca desta utopia. Uma
espécie de guia para deixar uma construção teórica e formal de liberdade
e caminhar na direção de conquistas concretas, como a do voto feminino
ou dos direitos dos negros. Querendo ou não, fazendeiros, escravocratas,
comerciantes e profissionais liberais daquele salão na Filadélfia
estabeleceram a base de uma agenda de 200 anos de protestos.
Diferentemente do processo americano, a Independência do Brasil foi
apropriada pelo Estado e, apesar da participação popular em alguns
episódios, como as lutas da Bahia [Ver RHBN nº 48], sempre foi
considerada herança governamental e responsabilidade oficial. O processo
de ruptura entre as 13 colônias e a Coroa britânica foi incorporado
mais amplamente. O 7 de setembro (lembrança da independência brasileira)
e o 4 de julho (norte-americana) sempre seriam muito diferentes:
oficial o primeiro e popular o segundo.
Na própria Declaração de Independência,
os colonos reconhecem que seria melhor deixar tudo como estava
Da memória da independência dos EUA retiram-se metáforas, exemplos e
propostas de ação que servem desde recusa conservadora da presença do
Estado na economia, como prega o Tea Party, até a proposta de
maior inclusão do negro na sociedade, caso do “Eu tenho um sonho”. Nos
dois casos, a disputa pela memória existe porque o processo é muito
amplo e permite adaptações e usos diversos. É possível exigir, como fez
Martin Luther King, que o Estado promova uma política efetiva contra a
segregação racial em nome dos “pais fundadores”. Também é igualmente
possível exigir que o Estado não lance novos impostos, respeite a
iniciativa privada e o direito do indivíduo de prosperar. Desta maneira,
1776 é um signo aberto, ou seja, pode ser associado a diversos
contextos. Cada momento ou grupo conseguiu, quase livremente, constituir
seu ideal do que tenha sido a “essência” do 4 de julho.
Como toda unidade nacional, a dos EUA foi fruto de elaboração variada e
histórica. Para formar uma nação com um mínimo de coesão, foi sempre
necessário combater um perigo externo: os ingleses do século XVIII, os
índios do XIX, os comunistas do XX ou os atuais “terroristas islâmicos”
deste início do XXI. Todos serviram de poderosos catalisadores para
viabilizar a nação.
A realidade das 13 colônias era de profunda variedade religiosa,
econômica e social. Em 1776, não havia nada próximo de um país. O
esforço inicial dos colonos no processo de luta contra o Parlamento
inglês foi o de pertencimento. Seus documentos pedem reconhecimento de
seus direitos como parte viva e igual do império britânico. Na própria
Declaração de Independência, os colonos reconhecem que seria melhor
deixar tudo como estava, já que não havia um sentido claro da Coroa
britânica em prejudicá-los.
Feita a Independência, restava o desafio de construir uma nação.
Valores como igualdade tinham de ser redefinidos dentro de limites
socialmente seguros. Símbolos deveriam ser inventados. Tratava-se de dar
forma a uma comunidade surgida a partir de uma guerra.
O país que tinha nascido sem nome teria sua diversidade aumentada
enormemente com a imigração. Como constituir uma nação e criar
instituições com navios despejando lituanos, italianos, espanhóis e
irlandeses todos os dias? Sem resolver a complexa questão, uma das
respostas foi a guerra.
Lutar contra o outro forja um dos sentimentos mais intensos de
identidade. Permite a um grupo, irredutível na sua alteridade, sentir a
continuidade e a força do objetivo comum. O coletivo aumenta a força,
justifica a violência e dilui responsabilidades.
A história americana pós-1776 estabeleceu com clareza quem seria o
outro, o inimigo, mas nunca conseguiu definir com nitidez quem seria o
americano. Este é o grande desafio até hoje, quando a excepcionalidade
americana é cada vez menos reconhecida. Resta o “admirável mundo novo” (brave new world:
expressão da peça “A Tempestade”, de Shakespeare), que, por sinal,
nasceu de ideias contidas no sonho da Independência dos EUA.
Leandro Karnal é professor de História da América na Universidade de Campinas, autor de Estados Unidos: A formação da nação (Ed. Contexto, 2005) e coautor de História dos Estados Unidos (Contexto, 2007).
Revista de História
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