Um grito gutural abre a roda e impõe silêncio no salão. Quem comanda o
ritual é Edvaldo Borges da Cruz, ou mestre Lua de Bobó, senhor negro de
barbas brancas e olhar tranqüilo e cativante. Ele entoa a ladainha, um
cântico em forma de lamento, sob o ritmo da orquestra constituída de
berimbaus, atabaque, pandeiros, reco-reco e agogô. Espero o fim dessa
saudação aos deuses e mestres para começar a jogar. A música não acaba; o
tom lamentoso, porém, dá lugar a um ritmo mais cadenciado. Versos
curtos são respondidos em coro pelos que fazem parte do círculo –
metáfora do mundo que nos move.
Tirei a sorte grande: por estar posicionado como a primeira pessoa de
um dos lados da orquestra, fui chamado para “abrir” a roda de capoeira.
Uma imensa responsabilidade. É 29 de janeiro, e Lua de Bobó, renomado
capoeirista da Bahia, comemora seus 56 anos de vida. Os velhos mestres
estão reunidos na sede do grupo Menino de Arembepe, uma homenagem do
anfitrião à vila litorânea onde nasceu, ao norte de Salvador, e para
onde decidiu voltar a morar em 2001. Entre os muitos que vieram
prestigiar a festa consigo distinguir os notáveis Moraes, Curió, Pelé da
Bomba, Brandão, Virgílio, Raimundo Dias e Jogo de Dentro. É como se
Pelé, Zico, Ronaldinho e demais craques de muitas gerações tivessem se
reunido para uma pelada de sábado, em comemoração ao aniversário de um
deles.
Todos estão ali em nome da tradição: a mais antiga versão do jogo de
capoeira, conhecida como angola. Nela, o ritmo do berimbau impõe
movimentos vagarosos, estudados e de maior proximidade ao chão, exigindo
malícia e leveza dos jogadores. Entre os iniciados, essa toada de
negras raízes é conhecida também por “mandinga”. O nome vem de uma etnia
da África Ocidental e diz respeito à capacidade ilusionista dos
movimentos e golpes, sobretudo dos mestres lendários cujos atos eram
considerados mágicos e cuja mítica narra histórias de corpos fechados,
protegidos de bala e faca graças a poderosos patuás, amuletos que
carregavam consigo.
Misto de luta e dança, acredita-se que a capoeira chegou ao Brasil com
os escravos africanos. Por conta disso, ficou marcada por uma aura de
clandestinidade. A prática foi legalmente criminalizada em 1890, e os
“mandingueiros” passaram a ser tratados como transgressores da ordem
pública. A repressão no Rio de Janeiro desterrou a maioria deles para a
prisão em Fernando de Noronha. Na Bahia, contudo, a lei não foi levada
com tanta consideração. Apenas em 1922 os baianos passaram a ser
perseguidos com rigor, graças ao famigerado Pedrito, o chefe de polícia
de então.
Dessa época emergem nomes como o mais famoso mandingueiro de todos os
tempos: Besouro Preto, nascido em 1895. (Consta que ele recebeu o
apelido porque uma vez, após ser preso, os soldados encontraram sua cela
vazia, preenchida apenas pelo zumbido do inseto voador.) Valentão e
de-sordeiro, tinha o corpo fechado, mas não resistiu aos encantos de uma
mulher – que lhe quebrou a proteção – nem à faca de ticum, madeira
afiada, própria contra feitiços, que perfurou seu corpo numa emboscada,
em 1924.
Anos depois, em 1928, a capoeira dividiu-se. Mestre Bimba criou a
chamada “luta regional baiana”, em que adotou golpes de lutas marciais
japonesas, como o jiu-jítsu, e o batuque, outra manifestação
afro-brasileira.
Os mandingueiros, contudo, negaram-se a incorporar as inovações de
Bimba. Entre os mais resistentes estava um mestre lendário, Vicente
Ferreira Pastinha, o primeiro a articular um espaço formal para prática
dos angoleiros, o Centro Esportivo de Capoeira Angola, em 1941. Seus
discípulos ainda hoje estão entre os mais conceituados mestres – caso de
João Pequeno, 87 anos, e João Grande, 72. “Aos dois eu ensinei o
pulo-do-gato”, disse Pastinha certa vez. Outro seguidor dele vivo é
mestre Fernando, 72 anos, que mora em Saubara, cidadezinha no Recôncavo
Baiano. “Pastinha jogava sempre com roupa branca, e só sujava a ponta da
gravata”, recorda.
A divisão entre duas modalidades lançou a angola num relativo
esquecimento. No começo dos anos 1980, Pastinha faleceu, cego e
abandonado a despeito de sua fama. Longe de sua arte, João Grande
trabalhava num posto de gasolina de dia e fazia apresentações em shows
folclóricos à noite. A maioria dos angoleiros havia deixado de praticar.
Foi então que, em 1981, Pedro Moraes Trindade retornou a Salvador
depois de ter fundado no Rio o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho. A
mobilização de Moraes e seus discípulos trouxe de volta à atividade João
Grande e outros renegados. O local da resistência não poderia ser mais
simbólico: um salão dentro do Forte Santo Antônio, a mesma edificação no
centro histórico de Salvador onde João Pequeno já tinha fincado sua
escola. “Na época, havia poucas pessoas em atividade”, disse-me Moraes
quando o visitei no forte.
A história dos mandingueiros é a de superação dos limites impostos por
uma sociedade que marginalizou e deixou-se seduzir pela capoeira. Um
símbolo da cultura nacional, ela nunca teve apoio suficiente para que
seus mestres pudessem viver com remunerações dignas de sua importância.
Mas angola resiste – e o encontro anual dos mestres em Arembepe é a
prova viva. Quando eu entro na roda, o mundo se move, e a metáfora ganha
vida.
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