A Primeira Guerra é uma espécie de patinho feio da cultura popular.
Só para ter uma ideia, a Wikipedia lista 70 filmes sobre o conflito. A
Segunda Guerra tem 539. É fácil entender por que ela não rende muito
entretenimento. Soldados atolados em trincheiras ou forçados a avançar
inutilmente contra metralhadoras dificilmente são material para um blockbuster.
As máquinas eram poucas, lentas e desengonçadas. E, se a Alemanha faz
as vezes de vilão, o kaiser Guilherme parece um monge tibetano se
comparado a Adolf Hitler. A ausência é injusta. O mundo de hoje foi
parido pelo massacre.
Destruição em massa
Num
mundo dominado pelos Estados Unidos, os assuntos que pautaram todas as
questões internacionais da década passada foram norte-americanos: o
combate ao terrorismo e a Guerra do Iraque. Ambos têm sua origem na
Primeira Guerra.
O conflito começou, afinal, por um atentado
terrorista – que, em suas consequências, foi muito mais longe que aquele
orquestrado pela Al Qaeda em 2001. Em 28 de junho de 1914, um rapaz de
19 anos, Gavrilo Princip, matou a tiros o arquiduque Francisco
Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro. Era um ato de
terrorismo suicida – após o ataque, Princip tomou uma cápsula de
cianureto, que não funcionou. A ideia era forçar o império a entrar em
conflito com a Sérvia – essa parte deu muito certo, levando às
declarações de guerra em cascata, por meio de várias alianças, que deram
início ao conflito mundial em 1914. Princip provou que, num ato de
provocação, uma única pessoa podia ser capaz de mudar a História. “De
diversas maneiras, o ataque ao World Trade Center foi um eco direto
dessa provocação”, afirma o historia- dor Jay Winter, da Universidade de
Yale.
Além
do terrorismo, o radicalismo islâmico também tem origem no confronto. A
queda do Império Otomano, aliado da Alemanha e Áustria-Hungria, pôs o
Islã em crise. Os sultões turcos chamavam a si próprios de califas – os
detentores da autoridade do profeta Maomé. Palestina, Síria, Jordânia,
Líbano e Iraque passaram a ser dominados por cristãos europeus. A Arábia
Saudita, primeiro país a abraçar o islamismo ultraconservador wahabita,
nasceu em 1932, do vácuo de poder após a queda do império. No Egito,
país dominado pelo Império Britânico desde antes da guerra, foi fundada a
Irmandade Muçulmana em 1928 – considerada a precursora de todas as
entidades do Islã radical. Essa é, na opinião de Winter, a mais
importante consequência de toda a guerra: “A instabilidade nas zonas do
antigo Império Otomano toma hoje desde o Mar Negro até o Oriente Médio e
a África do Norte”.
O terror também vinha dos exércitos, na forma
das armas químicas, as primeiras de destruição em massa. Os franceses
começaram em 1914 com gás lacrimogêneo. No ano seguinte, ambos os lados
passariam a usar versões letais. Até o fim da guerra, 88 mil soldados
padeceriam, e mais de 1 milhão seriam atingidos, às vezes com sequelas
para o resto da vida. Para quem se lembra de como a Guerra do Iraque
começou, em 2003, com a caçada pelas “armas de destruição em massa” de
Saddam Hussein, não é difícil ver o que isso implica no mundo atual.
A cultura da incerteza
O
impacto brutal da Primeira Guerra foi sentido na cultura. “A Grande
Guerra tomou parte do que era, comparado ao nosso, um mundo estático,
nos quais os valores pare- ciam estáveis”, escreveu o historiador Paul
Fussel em The Great War and Modern Memory (sem tradução). Esse mundo de valores fixos nos séculos seria uma vítima da guerra.
Primeiro, foram os jovens. Os sobreviventes receberam da escritora norte-americana Gertrude Stein a alcunha de lost generation,
“geração perdida”. De acordo com ela, a expressão significava “sem
rumo”, não mortos. A reação aos anos de horror, seguidos pela relativa
prosperidade, foi o hedonismo. A década seguinte foi chamada pelos
americanos de roaring twenties, ou “furiosos anos 20” – a era
de ouro do sexo, álcool e jazz. O namoro foi inventado. O que havia
antes era a “corte”: um interessado se apresentando polidamente aos pais
da moça e, caso aceito, apenas conversando com ela a uma distância
segura, sempre com um parente no meio para supervisionar. O ícone máximo
do novo comportamento foram as flappers, as moças modernas da
década de 20, que abandonaram os espartilhos e penteados por saias e
cabelos curtos, e passaram a namorar, fumar e beijar em público.
“Enquanto muitos lutavam para se manter nos limites das velhas normas de
moda e comportamento, a nova prosperidade e mobilidade estavam movendo
um caldeirão de mau comportamento”, afirma o escritor Thomas Streissguth
em The Roaring Twenties (sem tradução).
A arte também se
radicalizou, refletindo a nova realidade instável e violenta. O
modernismo surgiu antes da Grande Guerra, mas, até os anos 20, sofria
vaias quase universais dos críticos. Se as artes plásticas já tinham
seus Picassos e Matisses, a arquitetura, design de objetos e,
particularmente, a literatura ainda eram praticamente as mesmas da época
vitoriana. Os anos 20 viram a ascensão na arquitetura e design da Art
Déco, que desviava das convenções aceitas por séculos. A Alemanha
tornou-se um dos maiores centros da vanguarda estética, com o
expressionismo alemão e a Bauhaus, que buscou eliminar toda a decoração
inútil dos objetos cotidianos – uma das origens e mantras do design
moderno. Isso tudo para grande constrangimento dos nazistas, que
tentaram banir o modernismo após subir ao poder.
Fim do domínio europeu
O historiador
britânico Eric Hobsbawn marcava a Primeira Guerra como o fim do que
ainda se ensina no Brasil como “Era Contemporânea”, período iniciado na
Revolução Francesa. Para ele, o confronto marca o nascimento do “Curto
Século 20”, que acabou com o fim da União Soviética, em 1991. Quando o
conflito se iniciou, ainda se vivia no tempo de reis, condes e
marqueses. O centro de poder do mundo era essa velha Europa, que
dominava incríveis 80% da área do mundo com suas possessões coloniais.
Três
grandes impérios morreram de uma vez: a Alemanha, o Austro-Húngaro e o
Otomano. Ainda que França e Grã-Bretanha tenham terminado herdando as
terras dos vencidos, essas colônias estavam com os dias contados: a
obrigação de lutar ao lado de seus opressores fomentou o nacionalismo,
movendo povos como indianos e egípcios a se rebelarem pela
independência. Após a grande guerra seguinte, os impérios desabariam
como
um castelo de cartas.
E quem daria as cartas no século
apareceu então. “A Primeira Guerra anunciou o fim da dominação europeia,
pois os verdadeiros vencedores foram Estados Unidos e Japão”, afirma a
historiadora Sally Marks, autora de diversos livros sobre o conflito. Ao
entrarem na guerra, os EUA quebraram uma velha tradição de não
intervenção em assuntos europeus, que vinha desde sua fundação. A
Primeira Guerra foi a primeira vez que o país mandou tropas para impor a
democracia. “A noção de que se pode criar democracia e, portanto, paz, é
de Woodrow Wilson”, afirma o historiador Jay Winter. “George Bush era
basicamente um wilsoniano.” Além de sair de seu armário isolacionista,
os Estados Unidos mantiveram sua estrutura intacta no conflito, enquanto
todas as potências europeias tiveram de se reconstruir. O que foi
feito, em grande parte, com dinheiro americano, que também havia
financiado suas armas durante a guerra. “Os Estados Uni- dos foram
transformados pela guerra de um país devedor em credor, uma posição que
mantém ainda hoje”, diz Winter.
Lutando do lado dos aliados, o
Japão derrotou as forças da Marinha alemã no Pacífico, ganhando colônias
e, pelo apoio prestado, conseguindo a aceitação europeia para seu
domínio sobre a Ásia. “Havia muita simpatia pelo país como o
representante do Ocidente civilizado no Oriente bárbaro”, afirma Sally
Marks. Indiretamente, essa é a razão por que a pátria de guerreiros
tornou-se a colorida e pacífica democracia atual. A pretensão imperial
desencadearia a trágica participação do Japão na Segunda Guerra do lado
errado, levando à derrota e reconstrução sob supervisão americana.
Mas talvez a mais importante novidade foi a União Soviética, país nascido do conflito. A rebelião começou como uma revolta contra os fracassos em campo de batalha, que levou à abdicação do czar em fevereiro, seguida por uma revolução dentro da revolução, em 7 de novembro, comandada pelos bolcheviques. O poder soviético pautou o debate político do século 20, e seus fantasmas ainda assombram o mundo – a recente crise na Ucrânia e as reações à incorporação russa da Crimeia fazem eco a vários medos tidos por superados.
Mas talvez a mais importante novidade foi a União Soviética, país nascido do conflito. A rebelião começou como uma revolta contra os fracassos em campo de batalha, que levou à abdicação do czar em fevereiro, seguida por uma revolução dentro da revolução, em 7 de novembro, comandada pelos bolcheviques. O poder soviético pautou o debate político do século 20, e seus fantasmas ainda assombram o mundo – a recente crise na Ucrânia e as reações à incorporação russa da Crimeia fazem eco a vários medos tidos por superados.
Aventuras na História
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